23 de mar. de 2014

A TRAGÉDIA DO SANDUICHINHO DO AVIÃO.

Uma e outra vez se escuta:
-Não, obrigado.
-Mmm não, muito obrigado.
-Não, agradecida.

Até Angelita, uma velhinha de manual, solta com voz trêmula um: 
- Não, acabo de tomar café da tarde com meus netos… te agradeço muito,  meu coração, mas não tenho fome.

De um lado e do outro do corredor é um fracasso absoluto o sanduiche do avião.
Laranjinho, o aeromoço do turno, se retira a seu posto cabisbaixo arrastando seu carrinho transbordante de sanduiches. Se afasta.

Dois passos mais atrás, fora de perigo, a velhinha volta a respirar. Tira o tupperwear  cheio de “muffins” e com voz atrevida diz ao marido:
-Amor, será que você pode preparar o chimarrão? Eu vou ver se consigo água quente com esse rapaz que parece bonzinho.

Cambaleando pelo corredor se aproxima do posto dos aeromoços. Com sua “matera”[1] nas  costas, se prepara para começar sua atuação da velhinha viciada no chazinho das cinco, quando um choro a deixa paralisada.
Derruba seus olhos para baixo e estende suas fofas mãos de vovó para dar  consolo  a uma criancinha perdida .

Grande surpresa teve, quando viu Laranjinho em vez da criancinha indefesa que sua imaginação criou.

Nosso aeromoço estrela é um “sex symbol” do ar: um metro noventa, todo malhado e bronzeado. Dono de uma sensibilidade especial, ama seu trabalho e ainda mais seu uniforme: camisa laranja (dai seu apelido) e calça cinza super entalhada.

Retomando: imagine a surpresa de Angelita quando vê o aeromoço sequestrado dentro da calça e abraçado ao carrinho da comida. Obviamente sua cabeça viajou mais rápido do que o senso comum e pensou qualquer coisa.

-Jovem,está bem? O que acontece com você? Quer que peçamos ajuda para tirá-lo da calça?
Entre surpreso e agradecido ele diz:
-Não, não tenho nenhum problema com a calça … são os sanduiches.

É nesse momento que repara com exatidão a cena que a rodeia:  Laranjinho engole entre choro e choro um sanduiche. Metodicamente repete a ação e enquanto Angelita acaricia seu rosto, entra em confiança e pode soltar algumas palavras. Está totalmente abatido.
A mulher, compungida com a situação, faz sinais ao marido para que durma. A operação “chimarrão a bordo” foi abortada. Ela tem uma nova prioridade: psicóloga de voo.

-Me diga, como é seu nome?
-Eliezer, mas pode me chamar de Laranjinho.
-Ah, que lindo...
Me escuta Mimoso, ups, Laranjinho, o que está acontecendo com você?
-É que…, buaaaaaaaaaaaaaaa, os san…buuuuuuuaaaaa..duicheeeeeeeeeeees…buaaaaa são um fracasso, buaaaaa
Ah… era isso…

Continua o ritual choro, sanduiche, choro, sanduiche.

-Me desculpa, mas eu não sabia… se acalma, não é tão grave…
-O que?

Irritado e incrédulo diante de tamanha afirmação insiste:
-O que acha que não é tão grave? Todo meu futuro laboral está em jogo. Ninguém quer comer os sanduiches. Sou um fracasso como aeromoço e você me diz: não tem importância?
-Me desculpa Mimoso, posso te chamar assim, né?
Assentindo com a cabeça, continua seu desabafo.

-Além disso, o que acha, que não reparei no tupperwear cheio de “muffins”?
Estou acostumado a lidar com velh...

Antes de deixá-lo concluir, o interrompe e se apresenta: -Angelita, prazer.

Ele se contém, respira e continua: 
-Angelita… estou acostumado a este tipo de passageiros.

Ela, evidentemente nervosa,  não sabe o que fazer com as mãos. Acomoda seu cabelo, a roupa e num gesto de desespero tenta esconder a “matera”.

Laranjinho arremete: 
-Não se esforce, já a vi. Como lhe dizia, estou acostumado a tudo isto, mostrando  com o queixo a “matera”.

-Que mancada, Laranjinho, me desculpa…
-Não, fica tranquila, em um minutinho te levo a garrafa térmica com água quente. Assim talvez alguém fique contente com meu trabalho.
-Aiii eu dizia a meu marido que você parecia um amor…
Mas fico triste, como posso te ajudar? Chega de comer isso! Vai te fazer mal!
-Não, prefiro morrer intoxicado a ver o carrinho cheio. Meu coração não resistiria.
Você não sabe o que era isto antes, todo o voo batendo palmas pedindo mais e mais.
Que época meu Deus! Que presunto! Que pão! Aclamado pelo público, ovacionado!
Me lembro e me emociono…

Borbotões de lágrimas se empoçam nos olhos de Laranjinho e no berço da lembrança começa a cantar: 
-Posso escutá-los…Sanduchinhos, sanduichinhos!!!
-Não,  não, não! Não me chamo Angelita se não conseguir te ajudar.
Você não pode continuar  assim, rapaz!

Mais calmo e esperançoso Laranjinho entrega sua sorte a Angelita.
- Você se acomoda, se arruma lindo que vou falar com todos os passageiros para que deem uma oportunidade ao sanduiche. Ninguém  imagina que você está desse jeito…

Minutos depois, Angelita já tem toda a plateia  convencida e expectante com o regresso triunfal do Laranjinho.
Ela o olha no fundo do corredor e, com um sorriso de mãe orgulhosa, lhe faz sinais para que se aproxime. Chegou a hora de retornar.

A plateia começa  a cantar freneticamente: -sand-ui-chi-nho, sand-ui-chi-nho, sand-ui-chi-nho.
Laranjinho está prestes a dar o primeiro passo quando vê um embrulho jogado dum lado do corredor. Fiel servo dos ares, se ajoelha instintivamente para juntá-lo e um ruído seco deixa muda á plateia.

Presa do medo e a burla coletiva, Laranjinho tenta cobrir o rasgo que atravessa de lado a lado a sua calça e, entre lágrimas novamente, grita:
-Angelitaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!

Ela, ciente do que está acontecendo, diz a seu marido:
-Amor,chega de papar esses “muffins”, tá? É grave, me passa a bolsa de costura!
Eu sabia que cedo ou tarde essa calça  ia trazer problemas a esse guri.

Cambalendo pelo corredor se aproxima do posto dos aeromoços.
Funde a preto.

FIM





[1] Bolsa para transportar a garrafa térmica e o chimarrão juntos.