Uma e outra vez se escuta:
-Não, obrigado.
-Mmm não, muito obrigado.
-Não, agradecida.
Até Angelita, uma velhinha de
manual, solta com voz trêmula um:
- Não, acabo de tomar café da tarde com meus netos…
te agradeço muito, meu coração, mas não
tenho fome.
De um lado e do outro do corredor
é um fracasso absoluto o sanduiche do avião.
Laranjinho, o aeromoço do turno, se retira a seu posto cabisbaixo arrastando seu carrinho transbordante
de sanduiches. Se afasta.
Dois passos mais atrás, fora
de perigo, a velhinha volta a respirar. Tira o tupperwear cheio de “muffins” e com voz atrevida diz ao
marido:
-Amor, será que você pode preparar o chimarrão? Eu
vou ver se consigo água quente com esse rapaz que parece bonzinho.
Cambaleando pelo corredor
se aproxima do posto dos aeromoços. Com
sua “matera”[1] nas costas, se prepara para começar sua atuação da velhinha viciada no chazinho das cinco, quando um choro a deixa paralisada.
Derruba seus olhos para baixo
e estende suas fofas mãos de vovó para dar consolo
a uma criancinha perdida .
Grande surpresa teve,
quando viu Laranjinho em vez da criancinha indefesa que sua imaginação criou.
Nosso aeromoço estrela é um
“sex symbol” do ar: um metro noventa, todo malhado e bronzeado. Dono de uma sensibilidade
especial, ama seu trabalho e ainda mais seu uniforme: camisa laranja (dai
seu apelido) e calça cinza super entalhada.
Retomando: imagine a surpresa
de Angelita quando vê o aeromoço
sequestrado dentro da calça e abraçado
ao carrinho da comida. Obviamente sua cabeça viajou mais rápido do que o senso comum
e pensou qualquer coisa.
-Jovem,está bem? O que acontece com você? Quer que
peçamos ajuda para tirá-lo da calça?
Entre surpreso e
agradecido ele diz:
-Não, não tenho nenhum problema com a calça … são os
sanduiches.
É nesse momento que repara
com exatidão a cena que a rodeia: Laranjinho
engole entre choro e choro um sanduiche. Metodicamente repete a ação e enquanto
Angelita acaricia seu rosto, entra em confiança e pode soltar algumas palavras.
Está totalmente abatido.
A mulher, compungida com a
situação, faz sinais ao marido para que durma. A operação “chimarrão a bordo” foi
abortada. Ela tem uma nova prioridade: psicóloga de voo.
-Me diga, como é seu nome?
-Eliezer, mas pode me chamar de Laranjinho.
-Ah, que lindo...
Me escuta Mimoso, ups, Laranjinho, o que está acontecendo com você?
-É que…, buaaaaaaaaaaaaaaa, os san…buuuuuuuaaaaa..duicheeeeeeeeeeees…buaaaaa
são um fracasso, buaaaaa
Ah… era isso…
Continua o ritual choro, sanduiche,
choro, sanduiche.
-Me desculpa, mas eu não sabia… se acalma, não é tão
grave…
-O que?
Irritado e incrédulo diante
de tamanha afirmação insiste:
-O que acha que não é tão grave? Todo meu futuro
laboral está em jogo. Ninguém quer comer os sanduiches. Sou um fracasso como aeromoço e
você me diz: não tem importância?
-Me desculpa Mimoso, posso te chamar assim, né?
Assentindo com a cabeça, continua
seu desabafo.
-Além disso, o que acha, que não reparei no tupperwear
cheio de “muffins”?
Estou acostumado a lidar com velh...
Antes de deixá-lo concluir,
o interrompe e se apresenta: -Angelita, prazer.
Ele se contém, respira e continua:
-Angelita… estou acostumado a este tipo
de passageiros.
Ela, evidentemente nervosa, não sabe o que fazer com as mãos. Acomoda seu
cabelo, a roupa e num gesto de desespero tenta esconder a “matera”.
Laranjinho arremete:
-Não se esforce, já a vi. Como lhe dizia, estou acostumado a tudo isto, mostrando com o queixo a “matera”.
-Que mancada, Laranjinho, me desculpa…
-Não, fica tranquila, em um minutinho te levo a
garrafa térmica com água quente. Assim talvez alguém fique contente com meu trabalho.
-Aiii eu dizia a meu marido que você parecia um
amor…
Mas fico triste, como posso te ajudar? Chega de
comer isso! Vai te fazer mal!
-Não, prefiro morrer intoxicado a ver o carrinho cheio. Meu coração não resistiria.
Você não sabe o que era isto antes, todo o
voo batendo palmas pedindo mais e mais.
Que época meu Deus! Que presunto! Que pão! Aclamado
pelo público, ovacionado!
Me lembro e me emociono…
Borbotões de lágrimas se empoçam
nos olhos de Laranjinho e no berço da lembrança começa a cantar:
-Posso escutá-los…Sanduchinhos, sanduichinhos!!!
-Posso escutá-los…Sanduchinhos, sanduichinhos!!!
-Não, não, não!
Não me chamo Angelita se não conseguir te ajudar.
Você não pode continuar assim, rapaz!
Mais calmo e esperançoso Laranjinho
entrega sua sorte a Angelita.
- Você se acomoda, se arruma lindo que vou falar
com todos os passageiros para que deem uma oportunidade ao sanduiche. Ninguém imagina que você está desse jeito…
Minutos depois, Angelita já
tem toda a plateia convencida e expectante
com o regresso triunfal do Laranjinho.
Ela o olha no fundo do
corredor e, com um sorriso de mãe orgulhosa, lhe faz sinais para que se
aproxime. Chegou a hora de retornar.
A plateia começa a cantar freneticamente: -sand-ui-chi-nho, sand-ui-chi-nho,
sand-ui-chi-nho.
Laranjinho está prestes a
dar o primeiro passo quando vê um embrulho jogado dum lado do corredor. Fiel servo
dos ares, se ajoelha instintivamente para juntá-lo e um ruído seco deixa muda á
plateia.
Presa do medo e a burla coletiva,
Laranjinho tenta cobrir o rasgo que atravessa de lado a lado a sua calça e,
entre lágrimas novamente, grita:
-Angelitaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!
Ela, ciente do que está acontecendo,
diz a seu marido:
-Amor,chega de papar esses “muffins”, tá? É grave, me
passa a bolsa de costura!
Eu sabia que cedo ou tarde essa calça ia trazer problemas a esse guri.
Cambalendo pelo corredor
se aproxima do posto dos aeromoços.
Funde a preto.
Está permitida a bajulação desenfreada?
ResponderExcluirPois estou honestamente apaixonado por estas historietas.
Virei fã, quero autógrafo.
Um abraço, e parabéns pelo trabalho.
brigadão!!! seja bem vindo sempre :)
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