22 de fev. de 2014

A colifata.


10:00AM. Férias, Buenos Aires, praça Armenia. Estou tentando acordar, a radio está ligada e uma voz profunda me agasalha junto com o edredão.
Radio La Colifata, transmitiendo del hospital psiquiátrico Borda.
Hoy les quiero contar una historia...[1]

Ser vaca no ”Río de La Plata” não é fácil.
O dia todo é grama, grama, soneca, ordenha,  grama,  grama, noite. De domingo a sexta sua vida transcorre igual: chata, vácua e triste como o olhar duma vaca no horizonte.
Pior ainda se você é uma vaca tão pretensiosa quanto Sheila.
Filha de mãe uruguaia e pai alemão, ganhou os mais importantes concursos do setor agro sem fazer nada, só sendo vaca. Mas mesmo assim não se acostumava com essa vida.
Com a cabeça cheia de fumaça, um tanto confusa e sem saber que era dona de um paraíso inigualável, um dia se cansou e fugiu.
Nem se importou com ninguém. Procurou  a sua babá Lindaura como cúmplice e juntas empreenderam viagem no vaca-móvel que nada tinha a invejar ao papa-móvel de João Paulo II.
Cheias de ideais e sonhos, partiram até a cidade onde imaginavam suas vidas mudariam para sempre: Buenos Aires. Meca do desenho de vanguarda, uma imensa oferta cultural e gastronômica, nada poderia sair mal. Quanto mais sucesso e prazer podia acontecer?
Rapidamente começaram a ser reconhecidas na paisagem “porteña”.
A vaca e sua “personal shopper” eram vistas todas as tardes borboleteando por Palermo Soho, San Telmo, Las Cañitas e tudo quanto novo canto “fashonista”  que aparecia no seu horizonte de vaca.
Até participou do reality show “A Vida da Vaca Sheila”. Foram alguns meses de sucesso viral, novos amigos e muito dinheiro. Até que numa manhã tudo isso sumiu.
E agora como continuar sem amigos, sem dinheiro e sem fama?
E as multas, promissórias e dívidas começaram a cair uma detrás da outra.
Foi duro, mas por sorte a Lindaura estava ali.
L: _ Será que éramos a coqueluche e agora a temos? Ninguém se importa com a gente. O único consolo são as liquidações de inverno, pensou...
V: _ Lindaura, vamos pra lá tem 50%.
V: _  Lindaura, venha pra cá tem 30%.
Mas chegou a primavera e com ela sumiram também os descontos imperdíveis.
V: _ Lindaura, vamos!
     _ Lindaura! Cadê você?
Cansada de empurrar o vaca-móvel e chateada por ser pobre, a Lindaura retornou covardemente para o campo.
V: Cadela maldita! Cuspiu nas próprias úberes que a alimentaram! Não acredito...
Nossa! E agora?
Nesse instante, tal qual uma carpideira, começou o choro mais longo que tinha feito em sua vida.
Nem no pior dos seus pesadelos imaginou o que estava acontecendo. Até Lindaura foi embora. Agora sim estava frente a frente com  a solidão, que chegou quase tão rápido como o efêmero sucesso, só que para sua companhia eterna.
Novamente, mas sem estar ciente, virou um personagem urbano.
O pessoal gritava: _ Olha só a Vaca Colifata. A “ex-fashionista”  virou maluca!
E assim passava as tardes parada no seu antigo vaca-móvel recebendo esmolas e engolindo o choro.
Algumas tardes, empolgada diante das vitrines, viajava em sua mente e imaginava ainda que sua vida duns meses atrás era certa, até que alguma velha maroca a acordava com seu sorriso maldoso.
Finalmente teve sorte demais. Um flanelinha se apiedou dela e a tirou da rua.
O Hospital Borda será sua nova casa.
Ali foi onde conseguiu chegar ao destino inicial de sua viagem, por um viés não esperado, mas chegou ao sucesso verdadeiro.
Virou a nova estrela da Rádio “La Colifata”*
Todas as tardes com seu olhar saudoso se erguia em frente  dum microfone e cativava a milhares de pessoas que ficavam paralisadas para escutá-la cantar.
Parabéns Sheila... desculpa, Colifata, você conseguiu!

10:15AM, putz! dormi de novo e minha Irmã está aguardando do outro lado da praça.
10:30AM. Desço rápido do apartamento, bato rápido as mãos para que ela me veja de longe.
Beijos, abraços e no meio de brigadinhas de Irmãs viramos rápido a esquina e grito: Nossa! é a vaca Sheila parada justo no cantinho da esquina.
Irmã : O que? Isso é um caminhão de concretagem. Qualquer pessoa que não seja  arquiteta sabe isso. Você está maluca?

-FIM-



[1] “La Colifata”:
[1]Em lunfardo, dialeto de Buenos Aires que significa “louco” dito com afeto e respeito. “Louco adorável”
[1]A radio “La Colifata” foi creada no ano 1991, se construiu como a primeira radio no mundo em transmitir dum hospital neuropsiquiátrico.





Obrigada Litercultura, Gráfica Monalisa e Fundação Cultural de Curitiba  pela publicação :)


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